“Vou escrever rude e direto. Há ocasiões em que não há tempo para
delicadezas e rodeios. É muito mais tarde do que se imagina ser. Você acha que
a sua vida é uma droga, que ela não é nada daquilo com que você sonhou. Você,
que torce o nariz e se recusa a comer arroz com feijão, picadinho de carne e
tomate que lhe são servidos, alegando que você merece caviar e lagosta:
digo-lhe que é melhor você criar juízo e comer o arroz com feijão, picadinho de
carne e tomate que estão no seu prato – é comida muito gostosa, especialmente
quando comida com um pouquinho de pimenta e amor.
Deixe as suas queixas para quando houver razões para elas: quando sua
mulher morrer de leucemia e você ficar sozinho, quando o seu marido ficar sem
trabalho e mergulhar na depressão, quando o seu filho morrer num desastre de
carro, quando o médico lhe disser que você está com câncer. Não, não estou
fazendo o jogo do contente da Poliana nem usando o argumento “muita gente está
pior que você”. O jogo do contente é um jogo de mentiras. E o jogo do “muita
gente está pior do que você” não consola. A desgraça do outro não é razão para
eu estar feliz. Estou simplesmente tentando chamar você à razão. O que estou
dizendo é que você está infeliz não por culpa da vida, mas por sua própria
culpa. Não é a vida que está estragando você. É você que está estragando a
vida.
Cada vez eu me impressiono com a loucura das pessoas. Que é que você
diria de alguém que vai pela vida espalhando fezes por onde passa? Faz isso e
depois se queixa de que a vida está fedendo. Com razão. O número de pessoas
infelizes em decorrência do mal cheiro de suas próprias fezes é muito maior do
que se pensa. Assim, cuidado quando você se queixar da vida. Queixas sobre a
vida, frequentemente, revelam as perturbações intestinais de quem se queixa.
Meu conselho é que você examine atentamente os seus olhos. Você tem medo
das pessoas que têm mau olhado, aquelas de cujos olhos flui um poder maléfico
que mata tudo o que toca. Já ouvi relatos de avencas e samambaias viçosas que
secaram no prazo de um dia pelo poder cáustico do olho mau.
Sobre o poder do olho mau das outras pessoas sobre a nossa vida eu nada
posso dizer nem sei se acredito. Mas sei dizer e acredito no poder do nosso
olho mau sobre a nossa própria vida. Arroz com feijão, picadinho de carne e
tomate, vistos com olho mau, são comida de mendigo.
Jesus, sábio conhecedor dos segredos do corpo e da alma, disse “os olhos
são a lâmpada do corpo. Quando a luz dos olhos é negra o mundo todo fica
mergulhado em trevas. Quando a luz dos olhos é colorida e mundo vira um
arco-íris”. O mundo não muda. Mudam-se os olhos com que nós o vemos. E aí as
coisas mínimas viram motivo de assombro. William Blake falava sobre “ver um
mundo num grão de areia e um céu numa flor silvestre”. Mas os olhos maus veem
ao contrário. Diante do mundo radiante eles só veem pedras e diante do céu
estrelado eles só veem fezes.
Não é a sua vida que vai mal. É a sua alma.
(…) Blake diz que “a árvore que um tolo vê não é a mesma árvore que um
sábio vê”. Bernardo Soares explica, dizendo que isso é assim porque “nós só
vemos o que nós somos”.
Aconselho que você cuide de seus olhos. Cuidado com eles! Têm uma
aparência de inocência, parece que nunca são culpados de nada. O fato é que
eles são capazes de coisas terríveis. É através deles que o lixo que mora em
nós escorre para o mundo e o empesteia.
Traga sempre com você um colírio anti-inveja. Inveja é doença ocular, ainda
não catalogada pelos oftalmologistas. Mas todos já a experimentaram. Ela se
caracteriza por uma perturbação no movimento dos olhos. Pelo menos é assim que
a descreveu Fernando Pessoa, que rogou aos deuses que o livrassem da “inveja
que dá movimento aos olhos”. Explico. Você está ali diante do prato de arroz
com feijão, picadinho de carne e tomate, cheirinho de pimenta e amor! Pura
delícia infantil! O corpo sorri, antegozando o prazer. Aí os seus olhos fazem
um movimento lateral e veem que os seus vizinhos estão comendo caviar com
lagosta. Quando os seus olhos voltam para o prato de arroz com feijão,
picadinho de carne e tomate, não é mais o prato de infância que eles veem. É um
prato de mendigo. E a alegria se vai.
Já é mais tarde do que você imagina. Não perca os momentos bons que a
vida está lhe oferecendo, enquanto você se encontra sobre o abismo. Pode chegar
um momento em que você venha a dizer: “Que pena que não comi com alegria o
arroz com feijão, picadinho de carne e tomate”. Mas aí será tarde demais.
Lembre-se: o passado já foi. Não há o que lamentar. O futuro ainda não chegou.
Não há o que gozar. A única coisa que temos é o momento. Não perca o agora!
Título original: ‘Arroz com feijão, picadinho de carne e tomate’ –
Extraído do livro: Concerto para corpo e alma, 10ª edição, Papirus – Campinas –
São Paulo – 1998 – Disponível na Loja Rubem Alves.”
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